Dados não conseguem mapear o trabalho infantil em Ponta Grossa
Vulnerabilidade social das famílias durante a pandemia aumenta o número de crianças e adolescentes trabalhando
Infografia: Emanuelle Benício |
A menina que cuida dos irmãos mais novos durante horas e ainda precisar fazer a limpeza da casa, o menino parado no semáforo vendendo doces ou a criança que trabalha no campo desde de manhã, sem nenhuma remuneração. São vários os rostos que estampam a existência do trabalho infantil. Segundo o painel do Bolsa Família, em um ano de pandemia, Ponta Grossa cadastrou mais de 1.551 famílias, chegando a 10.907 beneficiários em fevereiro de 2021. Uma das consequências do isolamento, foi a queda da renda de muitos lares que ocasionou a necessidade de crianças e adolescentes precisarem exercer alguma atividade.
Embora muitos usem o argumento de
que não é um problema o menor ter um serviço, o Art. 60 do Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) afirma que é “proibido qualquer trabalho a menores de
quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz”, sendo proibido até 18
anos qualquer serviço que coloque em risco a saúde do jovem, independente se
existe uma remuneração ou seja por interesse pessoal.
As bases de dados que hoje
documentam informações sobre o trabalho infantil não são atualizadas ou são de
difícil acesso. O Sistema para Infância e Adolescência (Sipia), por exemplo,
que possui os números dos conselhos tutelares, de acordo com o filtro para o
período do ano de 2020 e 2021, não existe nenhuma informação para Ponta Grossa.
O conselheiro do Conselho Tutelar Norte, Moisés Gomes, explica que essa base de
dados tem como objetivo disponibilizar fundos aos conselhos dependendo da
demanda relatada. Além disso, comenta sobre a dificuldade de conseguir manter
as informações atualizadas já que o sistema não é de fácil acesso.
O Disque 100 - telefone oferecido
para vítimas de crimes contra os direitos humanos - também permite a
visualização do número de denúncias recebidas pela plataforma. De janeiro a
junho de 2020 – último mês disponível - Ponta Grossa obteve 51 notificações e
240 violações contra a criança e adolescente, porém não é especificado se
alguma das denúncias são relacionadas ao serviço de menores de idade.
O Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), publica todo ano a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua (Pnad Contínua) com dados sobre o trabalho infantil, porém
apenas o censo traz a realidade de cada município. No ano passado seria
realizado o Censo 2020, mas a pandemia fez com que fosse adiada para esse ano.
Como a Pnad Contínua não foi realizada durante a pandemia, o órgão também não
terá pesquisas abordando o trabalho infantil durante o isolamento social. No
último dado divulgado pelo IBGE em 2010, Ponta Grossa tinha 3.8 mil crianças
ocupadas entre 10 e 17 anos.
No último dado
divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019
o Brasil contava com 1,7 milhões de crianças e adolescentes caracterizados como
trabalho infantil. Desse número, 1,4 milhões
exerciam apenas atividades econômicas, 108 mil realizavam atividades econômicas
e de consumo próprio e 463 mil apenas atividades de consumo próprio.
Isa Maria de
Oliveira, Secretária Executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do
Trabalho Infantil (FNPETI), comenta que “o trabalho infantil hoje se concentra
nas áreas urbanas e ele se concentra mais faixas etárias mais velhas”. A
secretária executiva da FNPETI relata que existe uma predominância do trabalho
informal, como vendedores ambulantes, e que na pandemia isso se tornou ainda
mais visível, já que muitas famílias perderam suas rendas. O FNPETI tem a
percepção que o trabalho infantil doméstico aumentou, pelo motivo das escolas
estarem fechadas e as crianças ficaram mais em suas casas. Ela reforça que as
diferenças de gênero e raça também estão presentes, já que a grande maioria das
vítimas são negros e as meninas normalmente são superioridade nas atividades
domésticas.
Escolas ajudam na identificação de exploração infantil
A Presidente do Conselho Tutelar
Oeste, Josiane Vezine, relata que a pandemia aumentou a vulnerabilidade social
das famílias, que já era precária antes. Para as crianças, a maior dificuldade
é a falta do ambiente escolar, no qual algumas apenas iam por causa do alimento
oferecido. Ao adolescente, as medidas de controle da covid-19 afetaram o ensino
profissionalizante buscado junto ao CT pelos pais atendidos.
Josiane fala da falta das escolas,
durante a pandemia, para observar a situação familiar, como as mudanças no
comportamento da criança ou outras atitudes que sejam necessárias repassar ao
Conselho Tutelar e são observadas por professores e pedagogos. “Hoje em dia a
escola deixou de ser aquele filtro, deixou de ser também aquela rede de apoio o
qual ela também sinalizava para o conselho”, explica.
Durante o isolamento, o
acompanhamento às famílias registradas no CT - normalmente são lares em que foi
encontrada alguma situação de vulnerabilidade - permaneceu, pois não pode
ocorrer a paralisação desse serviço, porém foram necessárias algumas mudanças
visando a segurança. “As visitas não deixaram de serem realizadas, devido a
pandemia e até mesmo por uma precaução nossa. Estamos fazendo por
intercalamento”, esclareceu a presidente. Ela conta que atendem as demandas
possíveis por telefone, mas que também auxiliam presencialmente, sempre
atualizando o cadastro e celular para não perderem o contato.
O Conselho Oeste é responsável por
no mínimo 79 regiões do município de Ponta Grossa. Em janeiro de 2021, não foi
registrado nenhuma situação de trabalho infantil, mas na categoria de atos
atentatórios à cidadania (mendicância, aliciamento, crianças em lugar
irregular), apenas em janeiro já foram 46 – mendicância é o ato de pedir
dinheiro ou vender objetos pelas ruas e semáforos.
A cidade com a maior população dos Campos
Gerais possui três Conselhos Tutelares (Leste, Oeste e Norte) para atender toda
a demanda. Até o fechamento da reportagem, o Conselho Tutelar Leste não enviou
os dados e não respondeu à reportagem. Já o conselheiro Moisés Gomes do
Conselho Tutelar Norte relatou que a presidenta está de férias e que ele não
conseguiria falar sobre esse assunto especificamente.
Pandemia dificulta o acompanhamento das crianças em Telêmaco Borba
O Ministério da Saúde possibilita
por meio do DataSus, informações sobre violência ou acidente sofrido em
decorrência do trabalho infantil. Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação
(Sinam) mostram que nos Campos Gerais entre o período de 2009 e 2018, o sistema
registrou 12 casos, sendo 11 notificados em Telêmaco Borba e 1 em Ponta Grossa.
No Paraná, o número sofreu aumento, já que em 2009 eram 9 casos e em 2018 eram
225.
Em 2020, nenhuma família foi
acompanhada por situação de trabalho infantil em Telêmaco Borba pelo CREAS,
segundo informações disponibilizadas pelo próprio órgão. Já em janeiro e
fevereiro de 2021 são quatro casos. No ano de 2019, o órgão chegou a acompanhar
12 meninos.
A presidente do Conselho Tutelar de
Telêmaco Borba, Cassiana Lima, conta que durante a pandemia o município teve um
aumento relevante de agressão sexual, física e psicológica, mas que não houve
uma alta nos casos de crianças pedindo dinheiro ou vendendo doces na rua. Ela
aponta que para saber o número de vítimas, o conselho tutelar depende dos
indicadores que vêm da saúde, escola, polícia e da sociedade em geral. “Se há
muitos casos sem atendimento é porque não está chegando até nós”, ressalta.
Cassiana relata que também existe
uma dificuldade quanto a compaixão das pessoas a crianças pedindo dinheiro ou
vendendo objetos pelas ruas. Essa atitude das pessoas acaba incentivando a
família a continuar explorando seus filhos. A Presidente comenta que o
atendimento do órgão ocorre 24 horas por dia. “Quando recebemos uma denúncia de
mendicância, realizamos imediatamente a verificação e cessamos a violência”,
esclarece.
O acompanhamento da família é de
responsabilidade do Centro de Referência Especializada de Assistência (CREAS),
no qual possui técnicas de psicologia e assistência social e ainda os insere
nos programas sociais do município como a Guarda Mirim e projeto Pescar –
projetos de qualificação profissional para adolescentes maiores de 14 anos.
Cassiana adverte que, quando necessário, o CT toma medidas mais rígidas,
podendo chegar ao Poder Judiciário.
A coordenadora do CREAS Samuel
Klabin, Bruna Javorski, menciona que a pandemia atrapalhou o encaminhamento dos
adolescentes para os programas sociais do município, o que colaborou para que
menores de idade fossem para os semáforos vender algodão doce, balas e
salgados. Bruna fala que houve queda nos números de mendicância por causa de
uma campanha feita em 2019. “A gente fez uma ação de conscientização do
comércio, nos semáforos a respeito disso. Orientando as pessoas a não dar
esmola para criança e adolescente. Explicamos que o lugar de criança e
adolescente é na escola, em programa de aprendizagem, serviço de convivência,
brincar, ter lazer e não sair na rua e correr risco”, afirma.
“Por conta dessa pandemia, a gente
não consegue também ter tanto acesso às famílias, saber como que está a
situação naquele momento e aí acaba que elas ficam um pouco descobertas”,
frisa. A coordenadora do CREAS relata que no dia anterior à entrevista foi fazer
a abordagem de um adolescente no semáforo que já é acompanhado pelo órgão e
pelo Conselho Tutelar, e voltou a vender algodão-doce. Ela conta que sofreu um
desacato por um cidadão que passava durante a abordagem, o homem parou o carro
dizendo que ela tinha que deixar o menor trabalhar porque ele estava apenas
ajudando a família. Bruna menciona que essa aceitação do trabalho infantil como
positivo, acaba dificultando o trabalho de combate.
A profissional lamenta a
subnotificação que ocorre. “Tem mais casos do que realmente chegam a nós. O
problema é realmente por que as pessoas entendem que está tudo bem o
adolescente trabalhar. Então eles acreditam que não tem que encaminhar para
nenhum órgão”, afirma. Outro ponto importante, é a remuneração ser maior do que
a disponibilizada pelos programas sociais, o que não motiva o jovem a abandonar
o trabalho infantil.
Pandemia atrapalha meta de erradicação do trabalho infantil até 2025
O ano internacional para a
eliminação do trabalho infantil foi aprovado pela Organização das Nações Unidas
(ONU) em 2019 com o objetivo de conscientizar países pelo mundo. A fim de que
medidas mais severas fossem tomadas e até 2025 essa atividade chegasse ao seu
fim. Porém a pandemia acabou retrocedendo o que já era lento.
De acordo com a Secretária Executiva
do FNPETI, Isa Maria, o IBGE não pode fazer a pesquisa PNAD contínua em 2020
por se tratar de algo muito específico e que não pode ser realizada pelo
telefone. Oliveira menciona que houve corte de verbas destinadas ao IBGE, mesmo
o instituto sendo reconhecido internacionalmente, até mesmo pelas pesquisas
dentro da área do trabalho infantil. “Nós vivemos uma situação de retrocesso
social tão grande no país, que isso atinge também esse descaso pelas
informações”, cita.
Segundo Oliveira, existe uma
ineficácia nos canais de denúncias hoje no Brasil, o que resulta no atraso da
intervenção dos órgãos responsáveis. “Eles não são canais eficientes, que geram
no denunciante uma sensação de certeza de que fez aquilo e de aquilo vai ter um
resultado”, aponta. Além disso, ela ressalta o fato da sociedade acreditar na
criação de dignidade por meio do trabalho, o que explicaria as pessoas
aceitarem o trabalho infantil.
O Departamento
de Proteção Social Especial, por meio da Fundação de Assistência Social de
Ponta Grossa (FASPG) realizou no ano passado um Diagnóstico Sócio Territorial do Município de Ponta Grossa, com foco na Identificação do Trabalho
Infantil. A empresa responsável, Painel Pesquisa, Consultoria e Publicidade LTDA, fez o andamento
da pesquisa em três fases: a elaboração de instrumentos para a coleta, a análise
e finalização dos dados e a divulgação dos resultados. A Chefe de Divisão de
Média Complexidade (DPSE), karym Collesel informou que os dados vão ser
disponibilizados em abril. De acordo com ela, inicialmente a coleta seria feita
nas escolas, mas com a paralisação das aulas a pesquisa buscou locais do
município com maior demanda de trabalho infantil.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) de Ponta Grossa, por meio da Procuradora do Trabalho Cibelle Farias, comentou que o “MPT está alerta para situações de crianças e adolescentes explorados no trabalho infantil e migração para a mendicância durante pandemia”. A procuradora ainda relata a busca do órgão para incentivar políticas públicas que retirem essas crianças das ruas, recomendando as cidades a tomarem providencias sobre o assunto.
Segundo a Psicóloga do CREAS de Telêmaco Borba, Danieli Santos, o trabalho infantil pode gerar sobrecarga e cansaço físico e mental, gerando interferência no desempenho escolar e contribuição para a evasão escolar. Além de deixar as crianças e adolescentes “exposta a inúmeras situações de risco, tais como maior suscetibilidade a sofrer violências, em suas variadas formas, e acidentes de trabalho”, afirma.
A
reportagem entrou em contato com a Vara da Infância e Juventude de Telêmaco
Borba e Ponta Grossa, porém não ocorreu o retorno. O NUCRIA e a Delegacia do
Adolescente informaram que dificilmente os casos são encaminhados para os dois
órgãos e que por isso não poderiam falar sobre o assunto.
Para denunciar, o indivíduo pode
tentar pelo plantão 24h com um conselheiro tutelar. Além disso existe o Disque
100 para denúncias relacionadas aos direitos humanos. A população também pode
se dirigir à sede do Conselho Tutelar ou CREAS. As denúncias são anônimas e é
necessário dar os dados completos sobre a ocorrência.
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